domingo, 20 de dezembro de 2015

MEMÓRIA – A luta por uma política cultural

A Elf (de fachada cinza), o legado visível de Gileno Chaves.
O legado de Gileno Müller Chaves vai além, muito mais além, da Elf Galeria, inaugurada a 11 de dezembro de 1980, na travessa 9 de Janeiro, em imóvel ao lado da residência daquele que viria a se firmar como o mais respeitado marchand do Pará. Posteriormente, a galeria migrou para a avenida Generalíssimo Deodoro, nº 506, até passar a funcionar, já em 2009, na avenida Governador José Malcher, na histórica passagem Bolonha, nº 60. O belo casarão que hoje abriga a Elf foi adquirido por Gileno, que nele passou a manter parte do acervo da galeria, naquela altura já grande demais para o imóvel localizado na avenida Generalíssimo Deodoro.
Em plena ditadura militar, avalizado pelo secretário municipal de Educação e Cultura da época, Mário Guzzo – que foi extremamente ousado naqueles tempos sombrios -, Gileno introduziu o arcabouço de uma política cultural plural, à margem de paternalismo e do compadrio. Para tanto, teve a decisiva colaboração de Luiz Octávio Barata, um dos mais respeitados intelectuais paraenses da sua geração, também prematuramente falecido aos 63 anos, a 24 de julho de 2006, por coincidência o ano da morte de Gileno e, como este, igualmente fulminado por um infarto. Polêmico – seja pela ousadia intelectual, seja pela aguerrida militância política de esquerda e em defesa das minorias, seja ainda pelo assumido homossexualismo -, Luiz Octávio, um nome que se confunde com a história recente do teatro paraense, embora banido dos relatos oficiais, foi um interlocutor privilegiado de Gileno na definição do que viria a ser o Programa de Arte, o Parte, instituído pela Semec, a Secretaria Municipal de Educação e Cultura, na administração do prefeito biônico Ajax D’Oliveira, ungido pelo regime militar, mas pessoalmente caracterizado pela bonomia.
Com o Parte, além da destinação específica de recursos para a produção cultural, a Prefeitura de Belém estabelecia regras definidas, em editais públicos, como parâmetro para a concessão de subvenções. Teatro, dança, música, artes plásticas, cinema e literatura, dentre outras manifestações artísticas, passaram a ser financiados pelo poder público municipal, através de criteriosos julgamentos, banindo o tráfico de influência. Este, é verdade, persistia no âmbito do gabinete do prefeito, habitual fonte de recursos de privilegiados e que abastecia, por exemplo, o Experiência, um grupo teatral de caráter mais comercial, comandado por Geraldo Sales, um diretor teatral de inegável competência naquilo que se propunha a fazer, que eram espetáculos mais palatáveis ao gosto do grande público. O Parte fez a vida cultural de Belém fervilhar, ironicamente com espetáculos declarada ou subliminarmente contestatórios ao status quo, em pleno regime dos generais, inspirando o governo estadual, na gestão Aloysio Chaves, a adotar o critério de editais públicos para a concessão de subvenções a espetáculos artísticos. Foi uma conquista imensurável, diante do menosprezo com o qual, então, o poder público tratava a cultura. Não por acaso, por exemplo, o secretário estadual de Cultura do governador Aloysio Chaves, Olavo Lyra Maia, era um ex-representante farmacêutico, que ganhara reconhecimento social ao casar-se com a filha de um próspero comerciante, de cujos negócios tornou-se herdeiro, mas que jamais deixou de ostentar a profundidade intelectual de um livro de auto-ajuda. Figura no folclore de suas gafes, reveladoras de sua indigência intelectual, ele grafar a palavra cena com s, em um encontro com lideranças da classe teatral, em episódio do qual há testemunhas vivas.

Lyra Maia, diga-se, foi mantido na Secretaria de Cultura no segundo governo do coronel Alacid Nunes, que retornou em 1979 pelo voto indireto ao Palácio Lauro Sodré, então sede do governo estadual, sucedendo Aloysio Chaves, eleito senador. Nada surpreendente, em um governador que carregava os habituais vícios da formação castrense e via as manifestações artístico-culturais desdenhosamente, como algo menor, e conferia pouco apreço à memória histórica. Em sua primeira administração como governador, recorde-se, Alacid Nunes a pretexto das obras de reforma na escola, simplesmente mandou destruir os arquivos do CEPC, o Colégio Estadual Paes de Carvalho, um tradicional estabelecimento de ensino público de Belém, no qual estudaram personalidades ilustres do Pará. Esse ilustre elenco de ex-alunos inclui ex-governadores, inclusive o senador Jader Barbalho, o morubixaba do PMDB no Estado e primeiro governador eleito pelo voto livre e direto, após a ditadura militar. Uma pequena parte do acervo foi salva pelo professor Clóvis Morais Rêgo, correligionário de Alacid e que em 1978, como vice-governador, assumiu o governo do Pará para cumprir um mandato-tempão, diante da desincompatibilização do governador Aloysio Chaves, para disputar uma cadeira no Senado. Um intelectual de perfil conservador, até pelo breve mandato Clóvis Morais Rêgo não teve chance de traduzir, como governante, seu apreço pelas manifestações culturais.

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